A pescaria do Universo – Parte I

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Os coloridos do céu na páscoa, aqui no Rio Grande, são de encher os olhos. Todas as nuances do vermelho, amarelo, cinza, roxo, emoldurados em nuvens que cobrem parcialmente o azul no entardecer. Indescritíveis, irretratáveis. Nenhuma pintura, nenhuma fotografia seria capaz de reproduzir o espetáculo em todo o seu esplendor.

Mudando um pouco de assunto, o Raimundo pensou em aproveitar o resto da tarde de quarta feira, antevéspera da sexta santa, para ajeitar um arame na costa do mato do Camaquã. Teria todo o feriado pela frente, vinha visita, e alguma rês poderia passar por ali. Juntar o gado nos matos não é tarefa fácil, e o Raimundo aprendera com a vida que é melhor prevenir do que ter mais trabalho mais tarde.

Pegou o tratorzinho, o reboque com o material de conserto de cerca e se foi, um trajeto de uns dez minutos, algumas porteiras e estradinha de campo. Raimundo sempre gostou da vida na campanha, deu umas cabeçadas, inventou umas lavouras e negócios especiais, como costumava lembrar, mas depois de anos pagando contas e ajeitando as coisas, agora é dono do que é dele, uma fração de campo, umas vacas que trata com carinho e garantem seu sossego, junto com a aposentadoria do trabalhador rural. Está, como se diz, com os bois na sombra.

Encostou o trator, desceu, carregou o moirão e umas tramas que cravou e amarrou para evitar a cruzada de alguma vaca roceira por baixo da cerca, numa covanca mais funda. Então pegou a máquina de espichar arame, e não encontrou a chave que usa para fixar a castanha na cerca. Uma dezenove que fica sempre no balde das ferramentas de arame, junto com a torquês, o martelo, pé de cabra e a chave de arame. – mas que droga, pegaram minha chave, pensou, e logo teve que rir porque ali não existia outro que não ele. Lembrou que precisou da tal chave para apertar um parafuso na roçadeira, e esqueceu de colocar de volta no balde.

Viagem perdida, amarrou tudo como podia, certificando-se de que a possibilidade de haver uma façanha das vacas ali era pequena, pelo menos até segunda feira, montou no trator, deu partida e tomou o rumo das casas.

E lá se foi o Raimundo, o homem dos apelidos. Logo ele, que é um cara amistoso, e não põe apelido em ninguém. Raimundo virou Mundo, Mundinho, Mundão. No colégio, quando iniciaram as aulas de ciência, a Márcia, que sentava perto dele, lascou Universo. Ele ficou meio azedo com essa, e o apelido pegou. Daí evoluiu para Verso, Niverso, Niver, Niversário. Muitos nem sabiam mais o seu nome.

Feito o serviço pela metade, eram umas quatro e meia, cinco horas, e o homem dos mil nomes resolveu que então terminaria o dia pegando umas traíras para a sexta santa. Foi para a casa, pegou outro balde, onde colocou duas garrafas velhas de coca cola, fechadas com rolha, onde cravava o anzol preso na ponta de uma linha enrolada na garrafa. Antes do anzol, uma bóia de isopor. Pegou também uma faca grande, bem afiada, para já trazer os peixes limpos. Um pedaço de coração de ovelha, que guardara no freezer congelado para a ocasião, e uma cadeira de abrir.

– Marília, vou pescar. Foi o que disse a esposa, que estava na cozinha.

Doralícia e Manoel se apresentaram para fazer companhia. Eram os cachorros da casa. Mundão tem a mania de batizar seus cães com nomes de gente, que é como ele considera os bichos. O açude fica não muito longe de casa. Então, se vai a pé, tem um pequeno pomar e a horta no caminho. Quando chegou, abriu a cadeira, pegou o saco com o coração de dentro a garrafa, e cortou dois nacos. Cravou nos anzóis, levantou, abriu um pouco da linha, fez as voltas com elas para pegar força e jogou na água.

O açude estava um espelho.

A pescaria do Universo estava para começar. Mas a história é meio comprida. Por causa disso, e para não cansar os amigos com a leitura, vou para por aqui. Na quarta feira publico aqui o que aconteceu.