Seu Jorge, o caçador (faz de conta)

0
333

O Jorge tem uma loja de tecidos, botões, aviamentos em geral. Fica perto do centro, em Santa Cruz. Passa os dias entre a casa e a loja. É um negócio simples, discreto, mas vai bem. Para trabalhar num negócio desses, é preciso calma e observação. Que Jorge tem de sobra. Mas tem a desvantagem da rotina. E rotina cansa. Anos nessa lida embalaram o sonho de ter um lugarzinho pra fora, onde possa ver o céu, as cores da natureza. Botar mãos e pés na terra e descarregar as energias negativas.

Não foi muito difícil encontrar uma chacrinha num fundo da Encruzilhada. O dinheiro que tinha disponível deu com sobra. Fez uma casinha, instalou umas mangueiras para buscar água numa nascente na serra, e as coisas se encaminharam bem.

Então, um dia, resolveu que tinha que caçar. Capivaras. Viver de forma intensa o apelo natural. Selvagem. Jorge se preparou. Comprou uma espingarda, cartuchos, botas, roupa camuflada. Um cantil para levar água e uma garrafinha metálica para a cachacinha, conforme via sempre nos filmes.

Ajeitou um vizinho, o Patrício, um homenzinho pequeno, criado e vivido naqueles fundos, para ensinar o caminho até onde encontrar as capinchas. E foram. Atravessaram um campinho, um arroio, e entraram num mato. Lá adiante, com o Jorge suando dentro da jaqueta de nylon, chegaram à beira de uma lagoazinha escondida. Patrício explicou para o Jorge que deviam sentar nuns tocos e esperar.

Beberam água, Jorge repartiu um gole de cachaça com o vizinho, e esperaram. Não demorou muito para o bando aparecer. Jorge viu os animais, eram uns vinte, e enquanto uns deitaram no barro, outros nadaram na lagoa.

– Tá vendo aquele capincho gordo ali, separado dos outros, seu Jorge? É o Maguila, o pai da tropa. Mal humorado, ele não gosta muito de se envolver com a gurizada. Tá sempre meio na dele, mas não te impressiona que ele é muito esperto, sempre bombeando o lugar. Até os cachorros tem medo dele, bobeou ele ataca mesmo.

– E capivara tem nome?

– Faz anos que venho aqui. Essa família mora aqui, e uns vão embora, mas outros sempre ficam. Aquelas duas ali, ó, são a Mafalda e a Gertrudes. São as mães daquela gurizada ali, ainda são bem novinhos, não deu pra definir quem é quem. Mas tem mais umas, a Túlia, que é engraçada, porque sempre se atira longe pra entrar na água. Gosta de dar show. As outras tão ali, na água, junto com o Armando e os outros. São uns capinchos mais novos. Eles ficam na volta, o Maguila de olho. Não é muito amigo deles, e tem ciúmes da mulherada. Mas eles enganam o velho, já vi escondidos dando uma namorada, hehe.

– Ah é? Parece gente até. Tu contando fico com a impressão de uma novela.

– Mas é meio que isso mesmo. De vez em quando eu paro aqui, e fico só espiando. Nunca chegam muito perto, mas elas sabem mais ou menos quem eu sou. De começo, eu achava que eram só uns bichos à toa, mas percebi que são como uma família, ou uma tribo, até com fofocas e intrigas.

– Eu li que a carne delas é boa. E que a gordura faz bem para curar bronquite. Tem que derreter, e depois passar no peito das crianças.

– Mas talvez até espante a bronquite e outras doenças pelo cheiro. Que vou te contar, são uns bichos meio fedorentos, hehe. E a carne não sei. Acredita que nunca comi?

Os filhotes, nadando, aproximaram-se de onde estava sentada a dupla. Do outro lado da lagoa, o Armando começou a latir, quase como um cachorro, como observou o Jorge. As mães se aproximaram. O Maguila entrou na água e nadou de maneira a se colocar entre os homens e os filhotes. Ali ficou, parado, olhando a dupla, enquanto as femeas levavam as crias para longe. Os homens estavam em silêncio, assistindo a cena.

Como que acordando de um devaneio, Patrício tirou o boné, deu uma coçada na cabeça. Botou novamente o boné e olhou para o companheiro.

– Bem, seu Jorge. O senhor é o dono e veio aqui para caçar. Agora é  bala. Qual deles o senhor vai escolher?