Traumas

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Aqui na nossa propriedade, usamos touros para produção de terneiros. E touros são animais estranhos. Grandes, fortes, de reações estranhas. Geralmente brigam usando as cabeças. Forçam até que um dos oponentes recue, e se dá então a relação de poder e medo. Um touro com medo é um animal perigoso. Por medo de outro, é capaz de atacar homem, cavalo, cachorro, o que tiver pela frente.

Nessa época de inverno, os touros ficam juntos, em um potreiro separado das vacas. Como não há vacas em cio, brigam menos. Tinha dois, mais velhos, que precisavam ser vendidos para descarte. Um deles, casualmente o maior de todos, era também o mais medroso. Marcado o dia do carregamento, fomos busca-los. O touro aquele, ao chegar na porteira, deu volta e foi para um mato. De lá não saiu de jeito nenhum. Foi preciso cancelar o carregamento.

Armamos estratégias, e a que deu resultado foi levar umas vacas, deixar com eles, e observar. Quando o touro estava com elas, próximo a porteira, trouxemos todos para a mangueira, e pudemos fazer o carregamento.

De uma maneira inusitada, o touro refugando a porteira me transportou para uma cena da minha infância. Tinha lá meus cinco ou seis anos de idade, eu acho. Estava em um hospital, com meus pais. Então, uma enfermeira me convidou para conhecer um pouco mais do prédio. Eu fui. Andamos por um corredor e entramos numa sala. Lá havia muitos objetos, até um tubo onde se podia respirar. –Quer experimentar? Ela me entregou o tubo, ajustou no meu nariz e perguntou se eu sabia contar de cinco a zero. Eu sabia, e comecei. No momento seguinte acordei, com sondas e cicatrizes na minha barriga. E dor. Depois descobri que eu tinha um problema físico, e que havia sido operado.

Fiquei bom do meu problema, mas ainda hoje tenho dificuldades com corredores, portas fechadas, enfermeiras e médicos. Não consigo confiar nisso, e sempre tenho um sentimento de fuga quando os enfrento. Posso, racionalmente, compreender que não há perigo, mas alguma coisa no fundo da minha alma acende, sempre, uma luz vermelha de perigo.

O touro deveria ter traumas, imagino eu. Só que, no caso dele, ainda que ele não pudesse saber, havia um destino trágico esperando no outro lado da porteira. Infelizmente ele tinha razão.